sábado, 25 de julho de 2015

Um satélite do teste de resistores – Pedro Cassel



em abril de 2013 quebrei o pé
sozinho em casa
dançando a canção "a chave" de bárbara eugênia

por conta disso eu fiquei seis semanas imobilizado
por conta disso eu tranquei quatro cadeiras da universidade
por conta disso eu assisti
por volta de quarenta filmes
no período de um mês e meio

por conta disso também
em maio de 2013
eu sabia muito mais sobre a nouvelle vague 
do que em março de 2013

os statements da nouvelle vague
e em especial os de jean-luc godard
sobre a singularidade da
linguagem cinematográfica
me impactaram de tal forma
que desde então
venho procurando semelhantes statements
em diferentes frentes

filmes que digam     :     isto é um filme
poemas que digam     :     isto é um poema
danças que digam     :     isto é uma dança

me parece que é justamente afirmando
a própria singularidade
e proclamando independência
que uma linguagem se faz apta
a dialogar com todas as outras
e
a partir de seu próprio centro gravitacional
torna-se fértil
profícua
maravilhosa
como um corpo celeste
que acumula satélites

em meados de 2014 li no blog de marília garcia
como prévia do livro um teste de resistores
um poema que
a partir da mesma referência godardiana
trazia ponderações muito semelhantes às minhas
         (o que faz do poema um poema?
         como construir um poema que se
         proclame enquanto tal?)

por conta disso tomei como prioridade
como parte da minha jornada intelectual pessoal
a leitura desse livro de marília garcia
mas por uma série de motivos
levei um ano para realizar
a leitura desse livro de marília garcia
que só fiz há um mês
em junho de 2015

um teste de resistores é um livro
-ensaio
sobre o que a poesia é
sobre o que a poesia pode ser
     mas não é um livro de teoria
     porque é um livro que põe em prática
     a reflexão que traz
um teste de resistores é um livro 
em que forma e conteúdo
se complementam
e justificam

a partir da leitura do livro um teste de resistores
muitas pessoas escreveram para marília
sobre a experiência que tiveram com o livro
na forma de poemas que seguem a uma
espécie de fórmula presente na obra:

              experiências pessoais    
              intercaladas
              com reflexões sobre a poesia
              dispostas em poemas prosados
              recortados
              e com pequenas repetições internas
              de palavras e expressões
              pequenas repetições internas
              que nos lembram que aquilo é um poema     
              pequenas repetições internas
              como as imagens insistentes
              nos filmes de jean-luc godard

como a marília garcia
eu gosto muito de escrever poemas
e também quero construir statements
de singularidade
mas meu caminho não tem sido o mesmo que o dela
eu me aproximo muito mais da poesia concreta
por exemplo
que tem a mesma preocupação
só que de um jeito diferente

mas foi mais que gratificante
a leitura de um teste de resistores
como foi gratificante a escrita desse poema
que agora envio num email
para a marília garcia
e para minha amiga maria


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o pedro cassel mora em porto alegre e é compositor.
o pedro cassel me mandou por email este satélite do teste de resistores 
ele fala sobre alguns tipos de statements
como por exemplo
alguns poemas que dizem eu sou um poema
alguns satélites que dizem eu sou um satélite
-- dizendo o que faz e fazendo o que diz.
como se eu dissesse aqui nessa nota ao poema
estou fazendo uma nota ao poema
assim este satélite nomeia a própria conversa-com-o-teste-de-resistores
(além de nomear também esta outra conversa que estou subindo aqui no blog)

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Para Marília Garcia – Julia de Souza











em janeiro de 2015
acordei um dia com os olhos inchados
as pálpebras vermelhas e irritadas
fui na dermatologista que pareceu um pouco espantada
e disse que eu estava com uma reação alérgica
que tinha provocado uma descamação importante
era muito difícil descobrir a causa
podiam ser os pelos das gatas que se acumularam
na casa durante os 10 dias que passei na praia
podia ser o calor que fazia em são paulo
podia ser o gás lacrimogêneo que inalei
quando tentei chegar ao protesto do mpl
na avenida paulista
podia ser algum cosmético mesmo os que você sempre usou
disse ela e também podia ser emocional

em janeiro de 2015 a dermatologista
doutora virgínia
receitou um creme com corticoides
para as minhas pálpebras
aos meus olhos eu estava muito feia
e muito perto do fracasso

em janeiro de 2015
quando retomei a leitura de um teste de resistores
percebi como para alguns poetas o diálogo é importante
não um diálogo velado ou imaginado
não a simples apropriação de versos de outros poetas
mas um diálogo verdadeiro
uma troca de perguntas e impressões
uma troca de reflexões sobre os textos
que acabam sendo incorporadas a novos textos
de forma mais ou menos explícita
no caso do livro da marília
isso é bem explícito

em janeiro de 2015 eu percebi como estava sozinha
e alheia a esses diálogos
que existiam só na minha cabeça
e quis pensar/escrever como a marília
justapor ideias aparentemente estranhas
para formular questões afins

em janeiro de 2015 eu voltei a caminhar
e as caminhadas nunca duravam muito tempo
no máximo trinta minutos
porque fazia muito calor em são paulo.
depois de uma caminhada eu pedi o computador emprestado
ao meu irmão para começar a escrever este poema
que talvez seja um exercício de simetria
de imitação
um jeito de dizer
je suis quelq’un
je suis julia
je suis marilia

alguns dos poemas de um teste de resitores
são como contos
são como crônicas
são como ensaios
não só porque contam histórias
mas porque têm um ritmo de caminhada
uma caminhada hesitante
uma caminhada de alguém que para
e se pergunta

os poemas de um teste de resistores estão
cheios de perguntas
os poemas de um teste de resitores têm
uma clareza importante
uma clareza de quem sabe qual é
a pergunta qual é
o assunto

a minha amiga jasmin
não me lembro se em 2007 ou 2008
ou 2009 recortou letras grandes de papel craft
e colou no alto da parede da sala
a frase qual é o assunto?
sempre que eu ia à casa da jasmin
e lia aquela frase
ficava bastante intrigada
eu não sabia se ela tinha colado aquela frase
no alto da parede da sala
para falar da falta de sentido
para falar da falta de clareza ou
para falar do tédio
acho que conversamos sobre isso
acho que nem ela sabia a resposta
afinal a frase fala justamente de uma
indeterminação.

quando eu digo que o livro da marília garcia
tem uma clareza importante
fico pensando nessa palavra
importante
quando a doutora virgínia
usou a palavra importante
para descrever a descamação da minha pele
esse importante quer dizer notável
esse importante quer dizer algo que não pode ser ignorado
mas quando eu digo que o livro da marília garcia
tem uma clareza importante
esse importante quer dizer não só algo que importa
esse importante quer dizer alguma coisa que se quer ter

ter clareza é se deixar atravessar?

[o vidro tem uma clareza ambígua
porque podemos e não podemos atravessar o vidro]

é preciso ter clareza para escrever
ou a clareza acontece no ato da escrita?
a falta de assunto é algo próxima da clareza?

no texto “a visão do fundo do poço”, louise bourgeois escreveu:
“não sei o suficiente para falar”
é preciso saber para escrever?
é possível aprender alguma coisa ao escrever?
“é tão difícil aprender. o que nos impede de aprender?”, escreveu a louise bourgeois.

em janeiro de 2015 eu pensei nesses versos:
talvez vocês consigam atravessar esse verão
mas poderão me perdoar pelo meu fracasso?

no texto “a visão do fundo do poço”, louise bourgeois escreveu:
“os outros não a julgam nem mesmo sabem que você está aí”

janeiro de 2015 foi um mês
de teste de resistências
foi um mês que eu atravessei e
não atravessei



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a júlia de souza é autora do livro covil (2013, 7letras)
a júlia de souza é paulistana e faz mestrado em literatura brasileira na usp.
a júlia de souza me mandou esse lindo poema no sábado
e eu gostaria de incluí-lo na série de conversas-com-o-teste-de-resistores
depois que eu li o poema da julia
eu fiquei pensando
e afinal qual é o assunto?

sábado, 18 de julho de 2015

Os espiões trácios dormiam perto dos barcos – Emmanuel Hocquard



Ao pé das Grutas de Hércules, no litoral atlântico, o arqueólogo Montalban trazia à luz os vestígios de um balcão romano, estabelecimento comercial do século I, que os vândalos em sua época haviam saqueado: as pinturas murais haviam sido completamente arrancadas e seus restos abandonados no chão e, pouco a pouco, recobertos pela areia. Quanto às paredes do local, elas tinham abastecido a demanda por pedra de gerações de autóctones: recentemente, o senhor Doolittle tinha encontrado material para usar na muralha ao redor da cidade.

Ao longo de semanas, todos os dias ele trazia seu lote de fragmentos coloridos de antigos afrescos que, uma vez lavados e dispostos sobre grandes mesas, se revelavam inaptos às mais pacientes tentativas de reconstituição, mesmo que parciais, do mais mínimo pedaço do mural.

Por outro lado, esta irredutibilidade do fragmento a reintegrar o conjunto original dava início, pelo viés das lacunas, ao desaparecimento do suporte e à perda definitiva do modelo, e consequentemente à hipótese de uma nova redistribuição do mundo, nascida do acaso a partir desses cacos cujas cores conservavam uma frescura impressionante graças aos quinze séculos de areia, no pressentimento de um tremor rítmico no qual o entre começaria a tragar, para dentro da cidade morta, sua parte viva, indo até o mar mais próximo, a estação já bem avançada com os riscos das grandes marés por causa do equinócio...

Liberados da origem e deixados à sua própria evidência, era preciso enviar esses fragmentos de volta à areia, pois toda mudança que faz sair um corpo dos limites de sua natureza / conduz instantaneamente à morte daquele que existia antes (Lucrecio).


Foi no verão de cinquenta e três.

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publicado em 1975 como plaquete pela orange export ltd.
"os espiões trácios..." reaparece nesse livro aí em cima chamado 
álbum de imagens da villa harris (pol, 1978)
e depois é recopiado no posfácio de teoria das mesas (pol, 1996)
a figura de moltalban está em vários momentos da obra de hocquard
e ele usa a anedota como dispositivo de trabalho, de escrita, de tradução:
como esses cacos que montalban não consegue remontar à origem,
a escrita deve ser nova distribuição do mundo, de acordo com a pista de um dado momento.
mais traduções de emmanuel hocquard aqui.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Petits Paysages – Nadia Porcar





nadia porcar é francesa e morou durante 16 anos no japão
onde fez alguns trabalhos como esse lindo petits paysages

seu trabalho pode ser visto/lido no site http://ifnothinghappens.com/

terça-feira, 14 de julho de 2015

Eu não sei se Fernando Pessoa realmente existiu – Emmanuel Hocquard





Eu não sei se Fernando Pessoa realmente existiu
(admitindo que saibamos o que existir quer dizer)
mas eu acho que ele existe à medida
que cada um de nós acha que ele existe.
E que neste sentido ele é único.
Não no sentido em que cada um de nós é único
– ou pensa ser –
mas no sentido em que Fernando Pessoa é único
isto é, como um gerânio
no meio de outros gerânios,
isto é, como todo mundo.

O que o torna tão diferente de muitos dos outros poetas
é a sua indiferença a todas as coisas,
dentre elas, à poesia e à indiferença.
Sua indiferença não é uma pose, nem uma atitude.
Ela é a expressão de uma inteligência viva.
Para Fernando Pessoa, ser inteligente é duvidar de todas as coisas,
dentre elas, da inteligência e da dúvida,
é tentar se desfazer daquilo que aprendemos.
Fernando Pessoa maneja sua inteligência
como o contrabandista de Valery Larbaud usa
seu pequeno espelho de bolso
para ter certeza de que os funcionários da alfândega não estão na sua cola.
Eu acho que ele tinha um olhar de mosca.
E que seus olhos de mosca lhe permitiam ver tudo
ao mesmo tempo, uma coisa e seu contrário,
e mais alguma coisa que não é exatamente seu contrário
e que é, no fim das contas, a mesma coisa.

Admitindo que Fernando Pessoa tenha algum dia existido
(e que tenhamos chegado a um acordo sobre o que existir quer dizer)
eu acho que ele era do tipo que podemos chamar solitário,
e que ser solitário como eu imagino que ele tenha sido
é estar presente ao mesmo tempo em todos os lugares e em lugar nenhum
é ser ao mesmo tempo todo mundo e ninguém.
Ser Fernando Pessoa é ser tudo, para ele somente.
E alguma coisa que tem a ver com o sono.

T.S. Eliot precisava de Deus para amar
e para escrever o que ele escreveu.
A metafísica dava náuseas em Fernando Pessoa
porque a metafísica supõe uma dualidade
que lhe revolvia o estômago.
Esta náusea da alma (que ele mantinha
ao escrever o que ele escrevia)
lhe fez escrever o que ele escreveu
até não poder mais pensar, até este esgotamento
que tem a ver com o sono.

A voraz banalidade das coisas cotidianas
é seu ponto de partida e seu ponto de chegada.
Ele não pega uma coisa qualquer da realidade de todos os dias
para destacá-la e lhe dar um sentido
mais alto, nem outro sentido qualquer que esteja fora dela mesma.
Ele pega uma coisa banal que ele expõe por um momento
à luz enganosa da metafísica
para recolocá-la, inalterada – ou quase –
na banalidade voraz das coisas cotidianas.

Seigen Ishin afirmava que antes de estudar o Zen
sob a orientação de um bom mestre
as montanhas são montanhas e as águas são águas.
Que, chegando a uma certa visão interior da verdade,
as montanhas não são mais montanhas
e as águas não são mais águas.
Mas que uma vez atingido o estado de quietude,
de novo as montanhas são montanhas
e as águas são águas.
Eu não compreendo muito bem o que isso quer dizer,
mas eu acho que Fernando Pessoa teria ficado contente
de ouvir essa história.

Sem sombra de dúvida, é em torno dessa questão,
ou de alguma coisa próxima a isso, que giram sua lucidez
e sua retórica de gerânio.

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emmanuel hocquard nasceu em cannes em 1940.
emmanuel hocquard passou sua infância e adolescência em tânger
tânger é muito presente na obra de emmanuel hocquard
emmanuel hocquard começou a publicar seus textos como plaquetes nos anos 60
na editora artesanal que ele criou com a raquel lévy
a orange export ltd.
em 1978 saiu seu primeiro livro por uma editora comercial (pol)
"eu não sei se fernando pessoa realmente existiu" 
foi tirado do livro um detetive em tânger (pol, 1987)
e leitura do poema que abre esse post foi gravada em 2009
na casa de emmanuel hocquard em mérilheu
vila que fica nos pirineus franceses.

mais textos traduzidos de hocquard aqui

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Vertigo above the planalto – Rob Packer






… how much longer until we end this flight, touch down until i can tell someone about this poem or this essay like the one ismar told me about on the praça são salvador, drinking soft drinks, not beer and sitting by the playground, not the ground where the drums are practising for carnival or just providing backing beat for the latões and latinhas, the periguetes as they say in salvador da bahia, the place i’ve left behind, of the good young folk of laranjeiras, catete and flamengo, the good young folk of orange trees and catete and fleming or flamingo, who perhaps in some guide book or a 36 hours in piece in the new york times or guardian, although there the reader is granted a leisured 48 because she flew on friday to a city where there is or could be a square of revellers revelling in the drumbeat practice and the small or large cans of beer bought from the vendors who’ve brought the isopors of ice and beer estupidamente gelada, not because it does freeze sometimes, but because only through stupidity will it not reach the temperature at which all beer must be tipped away, like edu did the first night that i spent in this city, staying in the sahara, a mattress on the floor before i even knew that portuguese would be the language i would speak for years, but not the version that i always guessed i would, the one from my side of the atlantic, whose nasal diphthongs there like here i practised since i went to rome and had a phrasebook that claimed to represent all the languages of europe, except the newly opened parts and whose cities’ names i researched for that round of civilization 2 when the portuguese conquered the peoples of the world, ending with the zulus and whose cityscapes i never managed to design, sketching on a piece of a4 held up to a window, which held the perfect metro system of simple interchange and a station every kilometre i think although i never got the scale quite right, as envious as i was of all who had the luck to live in paris where within 500 metres you can find a mouth of the metropolitain, whose shortening to metrô is the end stress that’s adopted here, where the stern announcer tells you where to put your rucksack and always to stay aware as if the instructions she has just given were only an indication of the theoretical possibilities of getting through or not to somewhere in the zona norte without elbowing you way onto the chinese train estupidamente gelado from estácio, which i’ve never figured out is really eustace or a reference through estácio de sá to the beatific poet who goes with dante on the final cantos of the purgatorio and who watched beatrice and her rebuke, for why was dante thinking about other women just as why had i been seeking sex with other men, when i had one, who had unlike the vita nuova, not been taken away and was not offering up a heart to eat, even there in florianópolis and who like beatrice showed me the infinite grace he would be mortified for me to put in any way in line with god, who as the overstuffed überzeugten say was indeed the only one who could have made a city with such beauty, if you subtract the parts that now we’re flying over and the sickened bay and the tarmac of the landing here at galeão,


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incluo esse voo do rob packer 
o poema chegou há pouco tempo
e veio acompanhado da foto que abre o post
tirada pelo rob no sul da frança
"um trem pode esconder outro" é o título e mote de um poema do kenneth koch (este aqui)
que peguei como ponto de partida para escrever o engano geográfico.

o rob packer é inglês e mora no rio de janeiro
o rob packer escreve no blog nomadic permanence 
onde já postou um lindo texto sobre o engano geográfico
https://robpacker.wordpress.com/2014/04/09/one-map-can-hide-another-marilia-garcias-engano-geografico/