sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Moça de bicicleta – Francisco Alvim



O céu que é mais um mar sobre a cidade
os pés descolando-se do chão 
mergulho de um corpo em cores que são ventos
relva relva verde verde
pneus rilhando o saibro úmido
amarelas margaridas brancas

sons que lavam o ar

(O corpo: um sino ouvindo
e repetindo a paisagem)

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Faço perguntas sobre a diferença entre – Guillermo Kuitca



meu avô e minha avó
Silvio Rodriguez e Silvio Soldan
Deus e o Diabo e estes por sua vez com o Snoopy
uma moeda e a diferença desta moeda com outra
Rivadavia e a Av. Corrientes
Édipo e Julio Moyano Produções
Robert Rauschenberg e Robert Redford
Jorge e Luis Borges
Você e Eu
Paris e a capital da Alemanha Federal
Virginia e Eugenia
Estevão e Sebastião
o pão e a sacarina
um sainete e um entremez
Tia Ana e Peron
meus alunos e os seus
Guillermo Kuitca e eu
uma navalha e uma faca
durante e agora
o amor (em alemão) e o amor (em italiano)
o alemão e o italiano
esses dois pássaros que brigam
o Alvear Palace em Buenos Aires e o Hotel Carlitos em Assunção
a arte e as cartas
que diferença há entre Picasso?
o azul e o vermelho
Cézanne e eu
Uma fita cassete e outra
Que diferença há entre uma cassete dentro de uma xícara?
o vermelho e o violeta
Mondrian quando tinha a sua idade e você
[quando tinha a idade de Mondrian
2 e dois
MoMA e o de Buenos Aires
uma cadeira e o encosto
Habana e Havana
o concreto e a arte cimento
Ortega e Gasset
Romeu e Julieta
o minimal e a arte surrealista
a República Argentina e a Rue de la Paix
minha letra e a que eu tinha antes
what’s the difference between Porgy & Bess?
você e um quadro
uma rua e a outra
um cocô e o cubismo
a letra "e" e a letra "s"
um dó e um lá
minha mão e minha mão direita
uma placa dizendo pare e uma placa dizendo pare
que tenha ao lado um cão sem uma coleira scotch
ø e ö
Artforum e Artinf
Gudiño Kiefer e William Blake
os cafés San Juan e Boedo Antiguo
Callao e Santa Fé
A Bauhaus e a Pueyrredon
Woody Allen e Annie Hall
Crime e castigo de Dostoievsky
Gertrude Stein e seu retrato
Dorotea Bazal e Juana Azurduy
Theo van Gogh e Silvia Legrand
o retrato de Gauguin de Van Gogh e um auto-retrato de Van Gogh
os sete anões
o cu e a parede o
payo sola e o cerro cayo
o desprezo e a paz.




Guillermo Kuitca nasceu em Buenos Aires, em 1961. 
Guillermo Kuitca é um artista plástico argentino. 
Guillermo Kuitca teve sua estréia como artista no começo dos anos 80. 
Atualmente Guillermo Kuitca mora em Buenos Aires onde mantém um importante programa de bolsas, o Talleres Beca Kuitca, referência para jovens artistas.

A cartogafia, com suas linhas, traços, curvas, nomes, plantas e relevos parece ser o espaço em torno do qual toda sua obra transita. Nos anos 80, começou a pintar algumas séries de pinturas, como o "Ninguém esquece nada", composta de poucos elementos que se repetem como camas e pessoas viradas de costas e encurvadas. Também nesta década desenvolve trabalhos em que estão representados ambientes escuros, salas ou várias salas interligadas onde se passam cenas estranhas, com assassinatos, sexo e pessoas que parecem estar no limite da loucura. Em uma dessas séries, que aparece no vídeo acima, "O mar doce", ao fundo aparece projetada sempre a mesma imagem, uma das cenas mais conhecidas do cinema: a do carrinho de bebê despencando pela escadaria de Odessa, no Encouraçado Potemkin. Essas pinturas parecem tematizar de alguma forma o momento que vivia a pintura no final do século XX, em torno dos anúncios de seu fim. Pintar foi um modo de viver o luto pela morte da pintura. Kuitca acena para este gesto ao expor tais cenas confusas, com restos de narrativas, pessoas mortas, o carrinho de bebê despencando, cenas que parecem tiradas de um pesadelo, com registros que soam como o momento depois de tudo", pós-tudo, como se chegasse tarde demais ou se dissesse "não posso voltar atrás".

No final dos anos 80, Kuitca começa a elaborar um conjunto de trabalhos onde o eixo de variações temáticas é construído por diferentes mapas, usando como suporte a tela ou a superfície de um colchão. Trata-se de desenhos inconclusos, fragmentados, com os nomes geográficos alterados. Somam-se a esta série cartográfica, pinturas de plantas arquitetônicas de diversos espaços, tais como teatros e casas de óperas, ou layouts diversos, de capas de discos e diferentes documentos, como seu próprio currículo vitae.

Embora composto de séries e técnicas muito distintas, podemos traçar uma linha que relaciona as instalações de mapas sobre colchões às pinturas de plantas arquitetônicas, plantas de teatros, pinturas a partir de capas de discos e até mesmo seu "Tango nu", que é um exercício de cartografia dos passos de tango marcados com os pés sobre tela.

O poema traduzido acima foi publicado na Modo de usar & co. 1 e foi tirado de um catálogo do MALBA sobre a sua obra. O vídeo fiz a partir do mesmo livro e esse textinho saiu no blog da  modo. 

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Notas seletas do diário [6-7 de maio de 1950] – Louise Bourgeois


Você se preocupa com tudo o que faz.
Você desvia o olhar das coisas difíceis de fazer.
Você sempre inventa desculpas.
Você acha que está sempre certa.
Você carece de autoconfiança.
Você não enxerga o ponto de vista dos outros.
Você evita as pessoas, vive demais para dentro de si.
Você não tem uma finalidade na vida.
Você carece de interesse pelas coisas.
Você tem surtos de raiva.
Você circula por aí com cara de amuada.
Você descuida da sua saúde física, aparência.
Você não é tolerante e não tem controle sobre suas emoções.
Você é incapaz de amizade.
Você não consegue rir das situações e de si mesmo – 

Os artistas não se interessam pelo trabalho dos colegas,
eles se interessam por suas técnicas –


Os sentimentos expressos em formas ou valores – qualidades formais.O meu interesse por isto cria um modelo.
A técnica é uma escolha, livre, por que todo mundo não é artista?


Tradução Alvaro Machado e Luiz Roberto Mendes Gonçalves
in: Louise Bourgeois. Destruição do pai / reconstrução do pai. Escritos e entrevistas. São Paulo: Cosac Naify, 2000, p.56

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

A garota de belfast ordena a teus pés alfabeticamente – Marília Garcia




em 2008, participei da antologia a nossos pés, em homenagem a ana c., organizada pelo manoel ricardo de lima e publicada pelas editoras da casa e dantes. 
coloquei o a teus pés em ordem alfabética e depois escrevi um poema, usando alguns trechos da letra a. agora o poema virou um vídeo neste mashup de a téus + imagens tiradas do je, tu, il, elle, de chantal akerman, feito para o blog da companhia das letras, por ocasião do lançamento do poética, da ana c. (http://www.blogdacompanhia.com.br/2013/12/homenagem-a-ana-c-por-marilia-garcia/) 

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Começa – Josée Lapeyrère





começa quase sempre com um traço

uma palavra.... uma mosca que voa ou
um leopardo que atravessa o avesso
da janela ....de um salto.... e entre o arco
de suas patas estiradas ....eu vejo o homem
que lava os vidros ....ele não viu
a fera assim como os outros sentados
em seus escritórios.... diante das telas azuis
começa com um traço...... um índice
leve uma mosca que voa ....ou
uma tatuagem como a de um sol que
surge da dobra do cotovelo do lutador
as linhas negras saindo em leque
em direção a um bíceps para sempre matinal ou

o ruído da cadeira raspando
o ladrilho .....que desperta.... gritando
seus quatro pés...... um peso essa cadeira
a cadeira vermelha por que você já vai
por que não vai ..........vem
aqui me dá um beijo....... me deixa uma marca
a marca dos dentes ......ou das garras
a marca do chicote .......ou do vôo
da mosca ......a marca de um traço no ar

sábado, 14 de dezembro de 2013

Samba-canção – Ana Cristina Cesar




Tantos poemas que perdi
Tantos que ouvi, de graça
pelo telefone – taí,
eu fiz tudo para você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera, risinho modernista
arranhado na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia)
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz dos spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz…

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

A forma-poesia vai, pode, deve desaparecer? – Emmanuel Hocquard



A primeira formulação desta pergunta – “A poesia pode, vai, deve desaparecer?” – tinha a vantagem de já trazer a resposta dentro dela. Uma vez formulada a pergunta, conclui-se que ela pode existir. Quem, hoje em dia, questionaria se a televisão, por exemplo, pode, vai, deve desaparecer? Perguntar-se isso a respeito da poesia é dizer que sim. Este “sim” pode, no melhor dos casos, vir acompanhado de uma entonação extra: infelizmente, enfim, com prazer, o quanto antes melhor etc.
A nova formulação da pergunta (“A forma-poesia pode, vai, deve desaparecer?”) responde, na verdade, à afirmação da primeira. Perguntar se a forma-poesia – forma diferente daquela da prosa – pode, deve, vai desaparecer é dizer implicitamente: “certamente a poesia vai desaparecer, mas e a forma-poesia deve desaparecer por esta razão? Eu gosto muito deste recuo. Eu gosto muito da sutileza (perversidade) da pergunta. A Action Poétique, com o ar de quem não está dando os nomes aos bois, me surpreende de modo deleitoso, pois:

1. Eu gosto muito da Action Poétique
2. Eu gosto muito do Henri Deluy
3. Eu não posso simplesmente representar para mim mesmo o que poderia ser uma forma-poesia (Evidentemente compreendi bem que a pergunta não diz respeito a “formas poéticas simples”).

A rigor, poderia imaginar uma forma-prosa como uma linha. Um romance, um ensaio, um tratado etc. cabem, cada um, em uma única linha. Uma linha mais ou menos longa dependendo do caso: Bartebly menos longa do que Moby Dick. Para fazer caber uma linha de X quilômetros em um livro, nós a dobramos, como dobramos um metro articulado para que ele caiba num bolso. A maneira de dobrar a linha-prosa (sua justificação) obedece geralmente (na maioria dos casos) a critérios exteriores ao texto, tais como: o formato do livro, sua visibilidade etc., e não a critérios do pensamento.
A “forma-poesia” seria então, ao contrário, uma não-forma. Não a prosa dobrada, mas uma outra maneira de pensar. A não ser que consideremos “forma-poesia” como um aspecto (Gestalt): quando abrimos um livro de poesia, vemos imediatamente que:

1. não é prosa
2. então é poesia.

Um pouco breve, não? No entanto, não podemos ir além disso. O que salva a pergunta é a evocação do futuro. A “forma-poesia” vai desaparecer? Temos aí uma indicação de contexto (França, 1994).
Uma pergunta: a “forma-poesia” não seria uma forma por falta de outra definição? Resposta: não, isso seria muito simples! Outra pergunta: a forma-poesia seria a forma de uma outra maneira de ver, pensar, mostrar? Nem sempre, mas de qualquer maneira, seu projeto sim.
Quando W. observa que a filosofia deveria ser escrita como uma composição poética, ele mostra implicitamente este projeto: encontrar a ferramenta apropriada para operar relações (que não sejam prosa discursiva) entre objetos da linguagem.
A “forma-poesia” não pode então ser tomada como uma forma geral mas como a concretização de intenções singulares.
Eu perguntei ao Alexandre Delay, pintor, se a forma-poesia – forma diferente daquela da prosa – vai, pode, deve desaparecer? E sua resposta:
Eu diria que sim. Por princípio. Em seguida, me diria o seguinte: se queremos fazê-la desaparecer e se ela não quiser desaparecer, ela reaparecerá sob uma outra forma, se houver alguma necessidade. O que há de positivo na ideia da desaparição, é que ela vai engatar o processo da ressurreição em outro lugar, sob outra forma. Isso significa que ela pode nos ensinar alguma coisa que nós não somos talvez mais capazes de ver nesta forma, diferente da prosa.
Destacar aqui a desaparição é uma maneira interessante de entender a pergunta, pois deste modo um contexto é reintroduzido. Sentimos claramente, hoje, que alguma coisa vai, pode, deve desaparecer, mas não sabemos bem o que é. E não saberemos nunca se fizermos deste fato um objeto do pensamento (poesia, ou “forma-poesia”, pouco importa). Trata-se aqui de permitir, de propor, de manter aberto o projeto de outras maneiras de pensar ou de ver ou de dar a ver. Vista deste ângulo, a forma-poesia não terá mais nada a ver com a poesia (e nem com a prosa, aliás). A “forma-poesia” será apenas uma denominação por falta de outra qualquer.
Mas como, de fato, nós não temos outra à nossa disposição, podemos mantê-la, sabendo que nesta história negativa não entra nem uma grama de poesia ou de forma poética, isto é, que se representa sobre o ar (renovado) de uma desaparição.
E, no entanto, pode-se dizer, ainda resta o verso. Bem, não! Há todas as chances de que o verso também não exista mais. O que continuamos chamando de verso atualmente, também é provavelmente uma denominação por hábito. Dizemos verso apenas para dizer: isso não é uma frase. É: outra coisa. O que chamamos verso hoje é: outra coisa. Mallarmé (Pour un tombeau d’Anatole), Faulkner (a turbulência em O som e a fúria), Collobert (Il donc), O. Cadiot (L’art poetic’), B. Hollander (o Livre de qui sont était – a sair na coleção Um escritório sobre o atlântico – isso aqui é uma publicidade) etc. não são nem prosa nem verso; são: outra coisa.
Então, eu disse a Henri Deluy: “Certo, vamos chamá-la de ‘forma-poesia’, esperando que ela não desapareça rápido demais, porque nós ainda precisamos dela para escrever nossas autobiografias de ninguém”.

**

[Publicado em 1994, este texto foi uma resposta à enquete feita pela revista Action Poétique, que levantava essa pergunta aos seus colaboradores: "A forma-poesia vai, pode, deve desaparecer?". Dentre outras colaborações, há também esta aqui, de Leslie Kaplan.]