sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

F de forquilha de fiapo de – Érica Zíngano





entrei de visita na casa do Freud
ein liebe Freund von mir
em viena
no domingo passado
quando parei para tomar um café
e alguma prosa com cigarros
como era hábito
saí do anel central
– também chamado interior –
que circula a cidade
em sentido horário
e caí ali
19, berggasse
(end. trad. por pisar
em ovos: a pequena rua
da montanha)
e eu não era um super-
homem nem
a mulher-aranha
tentando subir pelo íngreme
caminho
até o cume
um verdadeiro gume
em looping
                                   360 e 9° graus
de mim – minúscula paisagem
invertida
sem aparente perigo
um miradouro escondido
na sala de espera
por trás da cortina
com jardim ao fundo
um espelho-morto
por trás da janela
logo ali
na entrada
gentileza sua, pensei
ou
uma armadilha fácil
modo de receber
em silêncio
mais simbólico do que
simpático
e não disse nada, anotei
Spiegel
no canto do olho
esquerdo
e entrei, era a minha vez –
ele fuma um charuto
compenetrado
vejo ao longe o lume
forte cheiro a tabaco
não, não é um campeonato
mesmo assim acendo
um cigarro
instantâneo fogo-fátuo
enquanto escrevo
escura, grande sala
escura, ceci n'est pas
une pipe papa
pas de problème pour moi
c'est juste un perroquet
en plus, pela luz fraca
do candeeiro
foco no canto direito
em direção
ao colchão
meio escorado
à parede
onde me deito
de pernas para o ar
                                   ah, é aí
que eu vejo as minhas meias
de pés trocados
e escuto ainda
vindo pelo assoalho
o eco dos meus passos
em voz alta
ele pede: olhe para cá
o pêndulo faz
tique-taque
é agora
quando eu disser
ataque
                   queda
a hora quase certa
onde já tinha chegado
dentro de uma caixa
transparente
pequena, muito
pequena
um vasto, largo
descampado
cheio de portas
empenadas
por todos os lados
de tamanhos
variados
um cemitério, penso
estou cercada
um monte de estórias
fora de serviço
enguiçadas
capaz de levantar
fantasmas
arrepio
as palavras falam
alto, baixo
são pedaços partidos
pelo chão
nunca param de falar
às vezes vacilam
mudam o tom
grave, agudo
o som – soçobro
é quando me mexo, percebo
quem é?
redobrada
escuto tudo
com máxima atenção
               -valo
                               cachor-
                                                    elef-
                                  -alhaço
      -lope
                                         até papai no-
escuto quando pego
pela beira
aproximo
ao pé d'ouvido
uma palavra a dizer
levanta outras
escondidas
            não deixa o chap-
     a cabeça ba-
                             -anta a saia, pernas, pernas,
                               dança, dança, dan-
        crian-
falam outras
atrás de outras
portas
seria um bordão
se não fosse
um clichê
bom para jogar no lixo
uma máquina de dentes
elétrica
dentadura metálica
reciclagem imediata
come-se vestígios
cospe-se fora depois
novos sobejos
frases, ênfase
renovada
plástico sai
sapato
vira vidro vira
vislumbre vira
            pula o portão, pul-
pedem, daquele lado
                                   vem, vem,
cor-
não vai dar tempo
acho
tenho medo
acho
por onde me esconderijo?
trovão é lugar de
escombro,
sombra,
sobra?
não sei qual
são tantas portas
não consigo abrir
não vejo chaves
alice querida
por que você não vem
me visitar?
começa a chover
aqui
começa
alice não chega
nunca
alice
a minha capa de chuva
vermelha
a minha capa de chuva
não me cabe mais
toda encharcada
pequena
vermelha
a minha capa de chuva
uma pedra voando
eu
na minha direção
na direção da minha
cabeça, digo,
voltando
caindo
desvio e pego
seguro no ar
com as mãos
abro os olhos
abrigo nenhum – perigo
Treffen sich zwei Jäger
beide tot, ele diz
é uma piada, imagino
Witz, ele ri
                        – bingo!
com todos os olhos
no rosto
não pode gargalhar
a boca sumiu
entre 2
ou 3 frases
a mais
eu
com uma cambalhota
bergamota
cabeça
casca grossa
caçarola
roça-roça, coça
me levanto girando
peixe-bola pela sala
saia rodada
saída assimétrica
mas não me lembro
se cheguei a fechar a porta 



Érica Zíngano nasceu em Fortaleza, em 1980. Érica Zíngano é escritora e artista visual. Antes – ou depois, Érica? – de visitar a casa do Freud, Érica formou-se em Letras (Português-Francês) e fez seu mestrado em Literatura Portuguesa na USP. 
Atualmente, ela mora em Lisboa onde faz sua tese de doutorado sobre a escritora Maria Gabriela Llansol. Publicou o livro fio, fenda, falésia, escrito a seis mãos (com Renata Huber e Roberta Ferraz) e poemas em várias revistas, dentre as quais a modo de usar & co. (leia na modo seus poemas; os trabalhos visuais podem ser vistos no site 1001 notas.) 
"F de forquilha de fiapo de" foi publicado na revista pitomba #3 (são luiz, dezembro de 2011) 

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